Sábado, 22 de Maio
Para minha vergonha tenho de admitir que durante muito tempo julguei que o sofrimento dos animais me tocava menos do que o do meu semelhante.
Pelos vistos era isso ilusão que a mim me dava, ou o resultado de algum mecanismo de autodefesa do subconsciente que, creio, vai fraquejando com o correr dos anos, pois hoje em dia o presenciar da dor do mais humilde dos bichos torna-se-me intolerável.
Aqui na aldeia, entre gente insensibilizada por hábitos seculares de maus-tratos às bestas de carga e aos animais domésticos ou selvagens, quando alguém desata aos pontapés a um cão ou às varadas a um burro, o remédio é fechar os olhos, fazer-me surdo, e algumas vezes deitar a fugir.
Meter-me de permeio não seria aceite. Ninguém compreenderia a razão de semelhante atitude, e resultaria infalivelmente em me tornar objecto de ridículo e desdém, o que num meio pequeno tem consequências iguais às da antiga pena do ostracismo.
Forçado, pois, a aceitar a minha cobardia, evito o mais que posso as situações penosas e, usando de manhas, uma vez por outra consigo desviar a atenção dos carrascos (há-os de ambos os sexos) o tempo suficiente para que a vítima lhes escape ou eles, distraídos, esqueçam o tormento.
Mas a vida, com as suas infindas surpresas, apraz-se a provar a futilidade dos nossos esforços. E assim hoje, quando ao fim da tarde parei à porta do senhor Arnaldo para dois dedos de conversa, não vi mal em aceitar o convite que ele me fazia para, na sua sala, me mostrar "uma coisa muito linda" que lá tinha.
Entramos, sentei-me num aparatoso sofá coberto de plástico, a penumbra das persianas corridas mal deixando aperceber o que me rodeava.
Hospitaleiro, o meu anfitrião foi ao armário, tirou de lá a garrafa de vinho fino e dois cálices. Encheu-os, bebemos um gole, falámos do calor, do reumatismo, do descaso que os médicos fazem dos doentes, da sabedoria de há anos termos ambos deixado de fumar.
Bebemos outro gole. Falámos da pena que é os padeiros já não cozerem pão centeio, tão saboroso e bom para a saúde, e a tolice das pessoas que deixaram de plantar cebolas, couves, tomates e batatas, e preferem ir comprá-las à mercearia.
‘Então, que coisa é que me queria mostrar?’ perguntei eu, ao ver que a conversa se arrastava.
‘Está na cozinha, já lha trago.’
Levantou-se, praguejando baixinho contra as dores nas costas, e dali a nada voltou com uma caixa de madeira que teria no máximo vinte centímetros de comprimento, outros tantos de largura, e aí uns dez de alto. Um único lado era coberto de rede fina.
Naquela enxovia, amontoados uns sobre os outros, a tremelicar, dando chilreios aflitos, os bicos desmesuradamente abertos na angústia do medo, da falta de espaço, e talvez também da sede e da fome, amontoavam-se cinco ou seis pequenos melros que o senhor Arnaldo tirara dum ninho.
Ele achava graça àquela aflição dos pássaros, queria que eu olhasse. Eu, agoniado, desviava os olhos. Perguntei-lhe se não seria melhor deixá-los voar, e ele riu-se da tolice.
‘Olhe que não voavam. E morriam logo.’
Contou-me depois que tinha a ideia de lhes fazer outra gaiola, pois aquela era pequena demais e eles cresciam depressa. Mas por experiência que já tinha doutros anos, às vezes acontecia que, como quase se não podiam mexer, os melros ficavam tolhidos.
‘Sabe então o que lhes faço?’
Eu não queria ouvi-lo, mas o senhor Arnaldo continuava a fitar-me, esperando a minha atenção.
‘Chamo o gato e atiro-lhe um de cada vez. E como eles esvoaçam, ainda é mais engraçado do que com os ratos. Quer ver?’
Abanei a cabeça, e numa inspiração de desespero, mas sem exagerar o gesto, levei as mãos ao peito.
O senhor Arnaldo quis saber se era do coração. Respondi-lhe que sim, que de vez em quando sentia umas arritmias. Felizmente o médico tinha dito que não era grave.
‘Ah! Os médicos!’
Levantei-me e caminhei para a porta com lentidões de doente. Os melros continuavam a chilrear apavorados. Bondoso, o senhor Arnaldo tomou-me o braço, recomendou cuidado com os degraus, sugeriu acompanhar-me até casa.
Agradeci, disse-lhe que não era preciso. E como se a ideia me ocorresse de momento, perguntei-lhe que tamanho ia ter a nova gaiola para os melros.
‘Os melros?’ o tom de surpresa e o franzir dos lábios a mostrar que já os tinha esquecido. ‘Sabe, uma gaiola bem feita dá um trabalhão. E acho que não vale a pena. Eles estão ali há duas ou três semanas, com certeza não se aguentam em pé. Amanhã ou depois atiro-os ao gato.’

         

(in Tempo sem tempo - diário de Maio 1999 a Maio 2000 - inédito em português)